Intelecto e Alma em Tomás de Aquino (1/13)
Este ensaio inaugura uma série que se debruçará sobre cada um dos treze artigos presentes na Questão 79 da “Suma Teológica”, na qual São Tomás de Aquino explora as potências intelectivas da alma.
No Artigo 1, intitulado “Se o intelecto é uma potência da alma ou se é a essência mesma dela”, São Tomás instiga uma reflexão sobre a relação intrínseca entre o intelecto e a alma. A indagação de Aquino é se devemos considerar o intelecto como a própria essência da alma ou uma das suas várias potências. Essa distinção não é meramente semântica, mas fundamental para entender a constituição do ser humano.
No cerne do primeiro artigo está a diferenciação entre o intelecto como uma potência da alma e a essência da alma. Compreender estes termos é crucial para apreciar a argumentação de Aquino. A essência de uma entidade refere-se ao que ela é fundamentalmente, o que define sua existência e natureza. Por exemplo, a essência de um triângulo é sua característica de ter três lados; isso é o que o define como triângulo. Por outro lado, as potências de uma entidade são as capacidades ou funções que ela pode exercer, derivadas de sua essência, mas não equivalentes a ela. No contexto humano, enquanto a essência da alma define sua natureza racional e imortal, as potências, como o intelecto, são manifestações dessa essência que permitem a realização de atividades específicas, neste caso, o pensamento e a racionalização.
Ao abordar essa questão, São Tomás articula uma posição clara: o intelecto, argumenta ele, não pode ser a essência da alma, pois isso implicaria que todas as operações da alma seriam operações intelectuais. No entanto, sabemos que a alma humana também engaja em outras atividades, como querer, sentir e perceber, que são distintas das intelectuais. Portanto, o intelecto deve ser visto como uma das várias potências da alma, uma ferramenta através da qual a alma executa a tarefa de pensar, mas não sua única capacidade ou sua essência. Esta conclusão de São Tomás é de grande importância, pois salvaguarda a complexidade das capacidades humanas. A alma não é um monólito dedicado exclusivamente ao pensamento; ela é um espectro vibrante de potências que inclui, mas não se limita ao, intelecto. Este entendimento nos permite apreciar a plenitude da experiência humana e reconhecer a multiplicidade de facetas que compõem nosso ser.
Ademais, ao estabelecer que o intelecto é uma potência da alma, São Tomás evita reducionismos que poderiam simplificar excessivamente a natureza humana. Ele fornece um quadro teórico que respeita a diversidade das funções anímicas e permite uma análise mais rica e variada da cognição humana. Nesta análise, é possível perceber como suas considerações se entrelaçam com questões contemporâneas sobre a mente e a consciência. A perspectiva de São Tomás oferece um contraponto valioso aos modelos reducionistas que frequentemente dominam os debates modernos sobre psicologia e neurociência. Sua abordagem enfatiza a singularidade da experiência humana e a necessidade de uma compreensão mais integrada e menos fragmentada do que significa ser humano.
Um exemplo importante dessa integração pode ser encontrado no trabalho do Dr. James Madden, que tem explorado como a visão de São Tomás sobre a alma e suas potências pode informar e enriquecer a compreensão moderna da mente humana.
Em seu livro Mind, Matter, and Nature: A Thomistic Proposal for the Philosophy of Mind, Madden discute como a divisão tomista entre essência e potências pode oferecer um modelo robusto para entender a consciência e a cognição de maneiras que os modelos reducionistas falham. Madden argumenta que a tendência reducionista na neurociência contemporânea — que frequentemente tenta explicar fenômenos mentais e conscientes exclusivamente em termos de processos físicos e químicos do cérebro — não captura adequadamente a experiência subjetiva, o livre-arbítrio e a racionalidade, aspectos que são centrais na perspectiva tomista. Ele propõe que a visão de São Tomás sobre as potências da alma, incluindo o intelecto, oferece uma explicação mais integral, que reconhece tanto a dimensão material quanto a espiritual da cognição humana.
O modelo de Madden sugere que, ao contrário dos modelos reducionistas que veem a consciência como um mero epifenômeno da atividade neural, a abordagem tomista vê a consciência e a racionalidade como expressões fundamentais das potências da alma humana, que interagem mas não são reduzíveis à sua base física.
Esta perspectiva permite uma compreensão mais rica das capacidades humanas, como a capacidade de fazer julgamentos morais e éticos, a experiência estética, e o engajamento em pensamentos abstratos e reflexivos. Madden reforça como a neurociência pode beneficiar-se da filosofia tomista, oferecendo uma visão mais completa e menos fragmentada do ser humano.
Pois bem, com a base estabelecida sobre o intelecto como uma das potências ativas da alma, que não se confunde com a essência da alma, mas a manifesta em ações de pensamento e racionalização, este breve ensaio nos prepara para abordar o Artigo 2 de São Tomás de Aquino da Questão 79: “Se o intelecto é uma potência passiva”.
Neste próximo ensaio irei explorar a natureza receptiva do intelecto, sua capacidade de ser afetado e moldado pelas realidades externas que percebe e entende. A investigação de como o intelecto, apesar de sua capacidade ativa, também desempenha um papel passivo, abre um vasto campo de discussão sobre a interação entre experiência sensorial e cognição intelectual, proporcionando uma visão mais completa da dinâmica entre a alma e o mundo externo. À medida que nos aprofundamos na investigação deste tema, vamos enriquecendo progressivamente nossa compreensão das complexas teorias de Aquino sobre a mente humana, iluminando aspectos fundamentais da nossa própria natureza intelectiva e perceptiva.